De Erasmo Carlos a Cazuza: Músicas brasileiras para o Dia da Mentira - Esquina Musical (2024)

*por Raphael Vidigal Aroeira

“deixei que se estendesse em sua mentira antes de fazer a ela a pergunta que borbulhava em meu coração” Gabriel García Márquez

A música brasileira não é de mentira, o que não a impede de abordar o tema. Para celebrar o famoso e afamado 1º de abril, selecionamos canções que tocam nessa questão, às vezes de maneira amorosa, outras zombeteira, mas sempre prezando pela qualidade da nossa canção popular, variando de ritmos e mantendo a categoria por meio de composições de Noel Rosa, Chico Buarque, Erasmo Carlos, Cazuza, Raul Seixas, João Roberto Kelly, Renato Russo, Adriana Calcanhotto e muitos outros, cantados em verso e prosa por Nara Leão, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Elza Soares e um time de peso.

“Você Só… Mente!” (foxtrote, 1933) – Noel Rosa e Hélio Rosa
“Acho que ajudamos a tirar o peso da grande música popular brasileira, cheia de geniais compositores que a elevaram a uma altura respeitável. Arejamos um pouco o panorama. Mas é bom lembrar que a música brasileira, desde Noel Rosa, Sinhô e companhia, sempre teve muito humor. Não temos a pretensão de ditar nenhuma norma ou caminho”, avalia Wandi Doratiotto, um dos integrantes do grupo Premeditando o Breque, da Vanguarda Paulista. “Você Só… Mente!” lançado em 1933, por Aurora Miranda, reflete a tese do intérprete.

“Me Dá… Me Dá” (samba-choro, 1937) – Cícero Nunes e Portelo Juno
Um sujeito enjeitado que usa as desculpas mais esfarrapadas para não precisar pegar no batente. Esse é o protagonista do samba-choro “Me Dá… Me Dá”, lançado por Carmen Miranda em 1937. A dupla de compositores formada por Cícero Nunes e Portelo Juno usa e abusa de situações esdrúxulas por meio de um senso de humor saboroso que estava em voga na época. A canção foi regravada com igual categoria e precisão pela musa da bossa nova, Nara Leão, que, naquele período, já se enturmava com a galera da Tropicália.

“Pra Quê Mentir?” (samba, 1939) – Noel Rosa e Vadico
Caetano Veloso se traveste de mulher para responder ao samba lamentoso de Noel Rosa. É a mulher que se defende das acusações do homem e apela a ele que respeite sua condição, sua dor e sua delícia. Apela a ele para que a deixe em paz, não mais a olhe, não a procure, não fale com ela, cale a boca e siga o seu caminho, pois ela fará o mesmo. É a mulher que pede ao homem que ele deixe a verdade fria das palavras e encare a mentira quente e contundente da vida. A mentira que norteou todo o amor entre os dois, e que agora os separa.

“Mensagem” (samba, 1946) – Cícero Nunes e Aldo Cabral
Um imbatível sucesso de Isaura Garcia foi o samba “Mensagem”, de Aldo Cabral e Cícero Nunes, lançado em 1946. No enredo, a história de uma mulher que recebe do carteiro o alento de um antigo amor. “Quanta verdade tristonha, a mentira risonha, que uma carta nos traz, e assim pensando rasguei, tua carta e queimei, para não sofrer demais”, diziam os versos finais da canção, que poderiam servir de fundo para o atribulado romance entre a cantora e o pianista e organista Walter Wanderley na década de 50. Jards Macalé regravou a faixa.

“Bar da Noite” (samba-canção, 1953) – Haroldo Barbosa e Bidu Reis
Edila Luísa Reis, conhecida como Bidu Reis, foi uma pioneira. Nascida no Rio de Janeiro, ela atuou como compositora, poeta, pianista, atriz, escreveu livro infantil, foi presidente da Associação das Donas de Casa da Zona Norte, “Rainha” do Sindicato dos Músicos e integrou o trio As Três Marias, com Marília Batista e Salomé Cotelli, que foi fundado em 1942. Uma mulher extraordinária. Como compositora, o grande sucesso de Bidu Reis foi o samba-canção “Bar da Noite”, parceria com Haroldo Barbosa, lançado em 1953 por Creusa Cunha na boate Mocambo, mas que se eternizou no canto de Nora Ney. Em 2021, Maria Bethânia o regravou: “Garçom, apague esta luz/ Que eu quero ficar sozinha…”.

“Cansei de Ilusões” (samba-canção, 1957) – Tito Madi
Nas palavras de Tito Madi, sua obra e a de Dolores Duran funcionam como “elo de união da música brasileira entre as fases de Chico Alves e a bossa nova”. Caracterizado por ser um compositor cuidadoso e atento aos detalhes, Tito utiliza-se do recurso de repetir com melindro as mais bonitas palavras da canção para que elas fiquem sutilmente gravadas nos corações. Ponte entre a tradição e a modernidade, Elizeth Cardoso privilegiava letras que calavam fundo em seu peito, como: “Mentira, foi tudo mentira/ Você não me amou/ Mentira, foi tanta mentira/ Que você contou”, em “Cansei de Ilusões”, de 1957.

“O Conto do Pintor” (samba de breque, 1960) – Miguel Gustavo
Miguel Gustavo teve, como modelo de composição, o hábito de inserir diversas personalidades em sambas feitos sob a medida para a interpretação do intrépido Moreira da Silva. No contexto das histórias de aventura, o humor era o grande trunfo. É o que acontece, por exemplo, no samba de breque “O Conto do Pintor”, lançado por Moreira em 1960, com enorme sucesso. Ali, Miguel tira onda com o mundo das celebridades e suas afetações artísticas, por meio de um sujeito que investe na persona de pintor. Jards Macalé regravou tal pérola.

“Boato” (samba, 1961) – João Roberto Kelly
O violão paterno e os ouvidos grudados no rádio deram à Elza Soares a oportunidade de conhecer Noel Rosa, Geraldo Pereira e Ary Barroso, que lhe abriu as portas pessoalmente para o estrelato, depois de zombar de sua roupa e arrepender-se, mesmo que veladamente, nomeando aquela menina humilde e tempestuosa de estrela. Interpretada com a avidez de sempre, Elza Soares soube dar ritmo certo ao samba de 1961, de João Roberto Kelly, “Boato”, em que sua voz alerta, com tristeza, sobre os infortúnios sombrios do ilusionismo…

“Mente ao Meu Coração” (samba, 1976) – Francisco Malfitano
Francisco Malfitano nasceu em Peruíbe, no interior de São Paulo, no dia 31 de julho de 1915, e morreu no dia 24 de janeiro de 2011, aos 95 anos. Compositor, Francisco Malfitano teve músicas lançadas por Aracy de Almeida e Silvio Caldas. O seu maior sucesso, “Mente ao Meu Coração”, foi gravado por Elizeth Cardoso, Paulinho da Viola e Vânia Carvalho. Em 1943, ele se casou e deixou a música. “Mente ao Meu Coração” permanece como um dos grandes clássicos da música popular brasileira e prova inconteste do talento do compositor Francisco Malfitano. “Mente ao meu coração/ Mentiras cor-de-rosa/ Que as mentiras de amor não deixam cicatrizes/ E tu és a mentira mais gostosa/ De todas as mentiras que tu dizes…”, sugere em alento o refrão do hit.

“Mente” (samba-canção, 1978) – Paulo Vanzolini e Eduardo Gudin
Poucos compositores tiveram o privilégio de se tornarem parceiros de Paulo Vanzolini, dentre eles, o violonista Eduardo Gudin, que, em 1978, dividiu duas composições com o compositor-poeta, “Longe de Casa”, e “Mente”, reiterada por Clara Nunes no mesmo ano, com a acentuação perfeita das contradições fetichistas: “Mente, ainda é uma saída, é uma hipótese de vida, mente, sai dizendo que me ama…/ Pois na mentira, meu amor, crer eu não creio, só pretendo que de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo”.

“Pega na Mentira” (rock, 1981) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Existem muitas duplas históricas na música popular brasileira, como Tom e Vinicius, João Bosco e Aldir Blanc, Vitor Martins e Ivan Lins, Luiz Gonzaga e Humberto Martins, Cazuza e Frejat, Rita Lee e Roberto de Carvalho, mas é difícil encontrar uma tabelinha que supere o sucesso de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Egressos do movimento conhecido como Jovem Guarda, eles estenderam o prestígio e se consagraram como dois dos principais compositores do cancioneiro nacional, sendo regravados por Nara Leão, Elis Regina, Gal Costa e muitos outros. Em 1981, eles compuseram “Pega na Mentira”, lançada por Erasmo, que começa assim: “Zico tá no Vasco com Pelé”, e elenca uma série de mentiras, como: “O Brasil não gosta de novela…”.

“Samba do Grande Amor” (samba, 1984) – Chico Buarque
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda – o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil, além de outros compositores de peso, como Milton Nascimento, Francis Hime e Edu Lobo. Em 1984, Chico lançou o “Samba do Grande Amor”.

“Maior Abandonado” (rock, 1984) – Cazuza e Frejat
Feita sob uma encomenda para o filme homônimo dirigido por Lael Rodrigues em 1984, “Beth Balanço” confirmou a ascensão do Barão Vermelho na cena do rock nacional naquele período, no esteio de outros sucessos presentes no terceiro álbum da banda, o último com a presença de Cazuza nos vocais, como “Maior Abandonado” e “Por Que a Gente É Assim?”. Em “Maior Abandonado”, parceria com Frejat, Cazuza lança mão de uma frase lapidar, que se tornou um de seus versos mais conhecidos: “mentiras sinceras me interessam”. Baita hit.

“Quase Sem Querer” (balada, 1986) – Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha
De uma maneira ou de outra, a melancolia sempre permeou a obra de Renato Russo, como comprova a faixa “Soldados”, do álbum inaugural da Legião Urbana. No entanto, essa visão pessimista e desconsolada da vida se intensificou no decorrer da trajetória do músico, que só assumiu a homossexualidade em 1989 e, com dificuldades de lidar com uma solidão crescente, se afundou cada vez mais no vício em álcool e drogas, afastando companheiros leais e se envolvendo em brigas com os parceiros de Legião Urbana. Já em 1986, a trupe lançou “Quase Sem Querer”, um grande sucesso.

“Cowboy Fora da Lei” (rock, 1987) – Raul Seixas e Cláudio Roberto
Raul Seixas é um artista iminentemente político, e, talvez por esse poder de transformação associado à sua figura, ele tenha permanecido com tanta força como uma figura popular e lendária. Depois de lançar vivas e efetivamente fundar os preceitos de uma “Sociedade Alternativa”, além de pregar ensinamentos cósmicos e de rebeldia, o “Maluco Beleza” lançou, em 1987, as suas considerações sobre assumir um cargo público. “Cowboy Fora Da Lei”, parceria com Cláudio Roberto, debocha, logo no início, da forma arcaica e coronelista que fundou grande parte da nossa política. Lá pelas tantas, ele dá o seu veredicto: “mentir sozinho eu sou capaz/ não quero ir de encontro ao azar”.

“Mentiras” (balada, 1992) – Adriana Calcanhotto
Adriana Calcanhotto nasceu em Porto Alegre no dia 3 de outubro de 1965. Cantora, compositora, instrumentista, produtora musical, escritora e professora, ela começou a carreira se apresentando em bares de sua cidade natal. Depois de se destacar no circuito de música independente de Porto Alegre e São Paulo, rumou para o Rio de Janeiro, onde gravou o primeiro disco, “Enguiço”, de 1990, que lhe valeu o Prêmio Sharp de revelação feminina daquele ano. Com “Senhas”, de 1992, passou a tocar no rádio graças a baladas como “Mentiras”, e que se tornou um dos grandes hits da carreira da cantora gaúcha.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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